Odes elementares
Ontem, no Prater, apanhei uma das milhares de castanhas espalhados pelo chão, a tirei da couraça de seu ouriço e a admirei por um tempo. Parecia polida, envernizada e lustrada. Que outra noz tem esse acabamento? A amêndoa? A avelã? O pistache na concha de marisco? A castanha de caju certamente que não e nem a noz da nogueira no seu casco rudimentar.
Apertei a castanha no punho fechado. Ela é compacta, como se fosse toda de madeira, mas o miolo é uma massa clara e farinhenta. Isso acaba sendo um tanto decepcionante, pois de madeira nobre, passa à piso laminado, à imitação barata. A joguei algumas vezes para o alto, apanhando-a no ar. No inverno as ruas da cidade cheiram à castanha assada. Entretanto, em potes e panelas ou no cone de papel, que é como geralmente são servidas, perdem a relação com as castanheiras do bosque. Tanto que até mudam de nome. Deixam de ser Kastanien e se tornam Maroni. A joguei novamente para o alto, mas dessa vez deixei que caísse no chão.
Já hoje, aqui no bairro, encontrei numa caixa largada na calçada, entre a quinquilharia da qual alguém queria se livrar, as “Odas Elementales” de Pablo Neruda em edição de bolso de capa preta e na diagramação clássica das Ediciones Cátedra. Folheei o livro mais para sentir o cheiro que impregna as página e o papel passando de um polegar ao outro. Depois o devolvi à caixa. Já ia seguindo caminho quando mudei de ideia; resolvi ler ao menos os primeiros versos para ter noção do que estaria perdendo e outra pessoa ganhando se tivesse simplesmente ido embora.
O primeiro poema chama-se El Hombre Invisible e é muito bonito e bastante longo. Por isso me encostei na mureta adiante para o ler por inteiro. Trata do poeta que só olha para o próprio umbigo, cantando a sua dor ou a sua alegria e se esquecendo de notar o mundo ao redor. Guardei o livro no bolso da jaqueta e mais tarde, no metrô e em casa, li mais algumas das odes, incluindo a “Oda a una castaña en el suelo”. Pois é. Nela, Neruda descreve a castanha…
como un violín que acaba
de nacer en la altura
y cae
Como um violino! Achei a comparação muito acertada. A textura e ainda mais o desenho da madeira do instrumento, curvilíneo e ondulado é de fato como o da castanha. Valeu ter levado o livro, inclusive porque a antologia do Neruda que tenho em casa não inclui esse poema. Assim como foram deixados de fora outros que me agradam bastante, como as odes a la cebolla, al átomo, al hombre sencillo e al laboratorista. Apenas a Oda a la alcachofra que eu já conhecia. A alcachofra que…
de tierno corazón
se vistió de guerrero
e cuja aventura chega ao fim quando…
escama por escama
desvestimos
la delicia
y comemos
la pacífica pasta
de su corazón verde
Prefiro esses aos poemas mais ambiciosos como a Oda a Leningrado que figura de Pushkin, Pedro o Grande, Dostoiévski até o próprio Lenin, ou à Oda à Guatemala, que condena o imperialismo Yankee ou mesmo à Oda a Río de Janeiro, que enaltece a paisagem e lamenta…
la cancerosa cola
de la miséria humana
en los cerros leprosos.
Não é mais autêntica e mais sincera uma Oda a mirar pájaros ou uma Oda a un reloj en la noche? Penso nessas coisas no bonde que me leva ao centro. Vou ao cinema assistir um filme coreano. Numa parada sobe uma mulher de touca e jaqueta jeans. Ela é pequena e muito magra e com o bonde em movimento caminha do fundo até à frente do vagão e se senta enfim à minha diagonal, de costas para a janela. Ela tira logo um bilhete da bolsa e com a chave raspa freneticamente o papel — é uma raspadinha da caixa lotérica — são duas, vejo agora que são duas raspadinhas e de tão nervoso o seus movimento, me contagia com a sua apreensão. De repente, o trincolejar do chaveiro cessa e o bonde freia diante da ópera iluminada. Alguns passageiros se preparam para descer. A ponta da chave raspa mais uma última vez e a mulher então ergue a vista. Seus olhos grandes na face estreita tem o verniz opaco das castanhas. E quanto mais a observo, mais eles me parecem a castanha fria que apanhei no Prater, entre milhares de outras castanhas e de folhas e terra.